Zemaria Pinto
Bocage – Mas não se pode falar em lírica escrachada sem citar o português – contrariando todos os prognósticos – Bocage (1765-1805), o inesquecível herói de todas as histórias de sacanagem do pessoal com mais de 30. Condenado pela Inquisição por “pregar ideias liberais em papéis sediciosos”, Bocage morreu humilhado e miserável em plena atividade criadora. Sonetista exímio, carnavalizou a pétrea forma em escracho derramado:
Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:
Dido foi puta, e puta dum soldado;
Cleópatra por puta alcança a coroa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado:
Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:
Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que isto de virgo e honra é tudo peta.
Bocage, como bom escrachado, mesmo na morte ri de si mesmo. Ao famoso
Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
figurinha carimbada em qualquer antologia escolar, ele contrapõe, com uma piscadela ao cúmplice leitor:
Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi gratia – o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:
Não quero funeral comunidade,
Que engrole sub venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:
Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
“Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.”