Amigos da Alcova

domingo, 3 de janeiro de 2010

De Catulo a Simão Pessoa – dois mil anos de poesia e escracho 5/5


Zemaria Pinto

Capa da plaqueta, publicada em 1993.

Simão Pessoa – Num dia qualquer de não sei quando – não botou data na dedicatória –, procurei o stand da Livraria Cabocla. Feira do Li­vro, Praça São Sebastião: "você compra o livro aqui, o autógrafo é ali no Armando", me diz o Ruy. Era o Brinca Comeu Brinco, reunião de cinco livros anteriores, obra completa antes dos 30 anos. O pou­co que conhecia dos jornais escancarava-se naquele livrinho raro: o lirismo perverso, do tipo que antagoniza o leitor, avisava logo no primeiro poema de Old Fashioned:

               sei que escrevo pra mim mesmo

E não havia sequer vestígios do remorso elementar com que é tratada a cultura aldeã. Dessacralizar a pasmaceira geral era a pa­lavra de ordem daquele exército individual:

               caldeirada de bodó
               moqueca de jaraqui
               filé de tucunaré
               costela de tambaqui
               suco de jenipapo
               batida de buriti
               creme de graviola
               sorvete de açaí
               e no final do embate
               a diarreia à la carte

Nem o guaraná velho de guerra era poupado:

               no mercado central
               turista quer guaraná
               coitado pensa que é fácil
               fazer pica levantar

Em Ócio dos Ofídios predomina um lirismo comprometido com um 1978 que parecia não ter fim. À maneira de Bacellar, poemas dedicados às frutas amazônicas, terenas, andirás e o belo "Distrito
Industrial". Ecológico antes da moda, jamais chato. Os poemas de Ca­rajo retomam a lírica escrachada, em sintonia com a manhã anunciada:

               estava tão excitado
               que nem tirou a chuteira
               mordeu os seios com força
               quase arrancou os mamilos
               meteu o dedo na xana
               arrebentou o clitóris
               ainda se não bastasse
               a ejaculação foi precoce
               agora quer o divórcio
               a mulher do torturador

Há registros de uma insuspeita alegria, denunciada pelas refe­rências infantis que pedem uma algazarra ao fundo:

               Ivo ganhou uma ave
               a ave de Ivo voa
               baleei a ave do Ivo
               Ivo ficou puto
               Ivo me dedou pro velho
               Ivo é um viado

Ou:

               O cravo transou a rosa
               debaixo de uma sacada
               o cravo saiu sorrindo
               a rosa descabaçada

Essa alegria não disfarçada tem seu contraponto natural na pla­cidez onírica de um poema que tem tudo para passar desapercebido em sua singeleza, se não despertasse o leitor com o vigor das palavras escolhidas:

               era dia de S. Cosme
               com crianças e cirandas
               vestias uma camisola
               recendendo a lavanda
               foi sonho ou foi delírio
               a trepada na varanda?

Em Miss Heartbreak a persona lírica é feminina e o poema desenvolve-se de maneira uniforme e sequenciada: da primeira denti­ção ao primeiro aborto, passando pelas experiências sensoriais mais elementares – a masturbação ao som de Eric Clapton, o primeiro porre, as paixões adolescentes, overdose, ácido, sodomia, cursinho, feminismo – até o fim:

               e partiu assim de repente
               deixando um vago na gente

O poema "Loba das Estepes" sintetiza o pensamento de Miss Heartbreak:

               os homens me temem pelo que represento
               subvertendo o jogo secular do jugo
               (...)
               para que da triste memória
               do passado tão recente
               se dê à luz uma nova mística feminina
               e que eles de repente
               percebam
               que trinta paus não valem uma vagina

Fecha o volume o maiúsculo Trastes & Contraste, ultrassonografia poética desta cidade maluca:

               são tantas cidades em uma só
               que só conheço a menor
               que só conheço a pior

Ah, querida leitora, prezado leitor. Se tiveste paciência para até aqui acompanhar-me, dir-te-ei o que me moveu a escrever estas parcas laudas: vinte palavras, leitora, vinte palavrinhas, leitor, que me calaram fundo na magrugada em que as li:

Esperamos que Simão Pessoa, porém, evolua sua linguagem poética, para que seu casamento com o sarcasmo não acabe em divórcio.

Cláudio Feldman, ao comentar os Hard Kais no novo livro de Si­mão, Matou Bashô E Foi Ao Cinema, foi o responsável pela minha insô­nia. Ó Simão, além do Bashô, manda o Brinca também pro Cláudio. Eu empresto o meu exemplar. Pra copiar.

A referência cinematográfica do título não é gratuita: underground e escrachado, Simão mata o pai Bashô e, se não reinventa, re­dimensiona o haicai e o poema-escracho, escrachando aquele e sobre­carregando de finíssimo lirismo este, como no metalinguístico "Súbito Aguaceiro":

               Libertam-se libélulas
               crisálidas de cristal
               sob sol insólito


               e eu meio bundão
               cansado de fazer
               tanta aliteração

Observe-se que há dois poemas, imbricados, o segundo comentando o primeiro, subvertendo o rigor métrico ortodoxo, porém conservando uma musicalidade expressiva, como neste "Flores de Cerejeira", onde o caráter oriental da forma é atropelado pela realidade telúrica que cerca a criação poética:

               Olho para as flores
               Olho e as flores caem
               Olho e as flores riem


               Brincadeira:
               nessa porra de cidade
               nem existe cerejeira!

Filiado à milenar tradição do escracho, Bashô traz como apêndice Karalhokê, 40 haicais de fazer corar os catecismos do velho Zéfiro: das manjadissimas Papai e Mamãe e Barba, Cabelo e Bigode até as pós-modernas Nintendo e Realidade Virtual, Simão inventaria as posi­ções do jogo amoroso, com um humor corrosivo, próximo à dor. Um hu­mor que não poupa nem ao poeta nem ao leitor: lírica escrachada. Um conceito que supera, porque contempla, as definições de poesia satí­rica, poesia burlesca, poesia erótica e cognatos, reunindo sob seu manto uma poesia com todas as qualidades técnicas intrínsecas, mas com um motivo patente, desmascarado, que não deixa margem a segundas leituras: escracho. Uma redução do caráter múltiplo da poesia a uma condição linear, prosaica? Absolutamente. A permanência e a univer­salidade do poema-escracho residem exatamente na coragem do poeta de lançar mão, com arte superior, do momentâneo ou do ridículo para eternizar-se.

Voyeurs desde o Natal de 2009