Zemaria Pinto
Capa da plaqueta, publicada em 1993.
Simão Pessoa – Num dia qualquer de não sei quando – não botou data na dedicatória –, procurei o stand da Livraria Cabocla. Feira do Livro, Praça São Sebastião: "você compra o livro aqui, o autógrafo é ali no Armando", me diz o Ruy. Era o Brinca Comeu Brinco, reunião de cinco livros anteriores, obra completa antes dos 30 anos. O pouco que conhecia dos jornais escancarava-se naquele livrinho raro: o lirismo perverso, do tipo que antagoniza o leitor, avisava logo no primeiro poema de Old Fashioned:
sei que escrevo pra mim mesmo
E não havia sequer vestígios do remorso elementar com que é tratada a cultura aldeã. Dessacralizar a pasmaceira geral era a palavra de ordem daquele exército individual:
caldeirada de bodó
moqueca de jaraqui
filé de tucunaré
costela de tambaqui
suco de jenipapo
batida de buriti
creme de graviola
sorvete de açaí
e no final do embate
a diarreia à la carte
Nem o guaraná velho de guerra era poupado:
no mercado central
turista quer guaraná
coitado pensa que é fácil
fazer pica levantar
Em Ócio dos Ofídios predomina um lirismo comprometido com um 1978 que parecia não ter fim. À maneira de Bacellar, poemas dedicados às frutas amazônicas, terenas, andirás e o belo "Distrito
Industrial". Ecológico antes da moda, jamais chato. Os poemas de Carajo retomam a lírica escrachada, em sintonia com a manhã anunciada:
estava tão excitado
que nem tirou a chuteira
mordeu os seios com força
quase arrancou os mamilos
meteu o dedo na xana
arrebentou o clitóris
ainda se não bastasse
a ejaculação foi precoce
agora quer o divórcio
a mulher do torturador
Há registros de uma insuspeita alegria, denunciada pelas referências infantis que pedem uma algazarra ao fundo:
Ivo ganhou uma ave
a ave de Ivo voa
baleei a ave do Ivo
Ivo ficou puto
Ivo me dedou pro velho
Ivo é um viado
Ou:
O cravo transou a rosa
debaixo de uma sacada
o cravo saiu sorrindo
a rosa descabaçada
Essa alegria não disfarçada tem seu contraponto natural na placidez onírica de um poema que tem tudo para passar desapercebido em sua singeleza, se não despertasse o leitor com o vigor das palavras escolhidas:
era dia de S. Cosme
com crianças e cirandas
vestias uma camisola
recendendo a lavanda
foi sonho ou foi delírio
a trepada na varanda?
Em Miss Heartbreak a persona lírica é feminina e o poema desenvolve-se de maneira uniforme e sequenciada: da primeira dentição ao primeiro aborto, passando pelas experiências sensoriais mais elementares – a masturbação ao som de Eric Clapton, o primeiro porre, as paixões adolescentes, overdose, ácido, sodomia, cursinho, feminismo – até o fim:
e partiu assim de repente
deixando um vago na gente
O poema "Loba das Estepes" sintetiza o pensamento de Miss Heartbreak:
os homens me temem pelo que represento
subvertendo o jogo secular do jugo
(...)
para que da triste memória
do passado tão recente
se dê à luz uma nova mística feminina
e que eles de repente
percebam
que trinta paus não valem uma vagina
Fecha o volume o maiúsculo Trastes & Contraste, ultrassonografia poética desta cidade maluca:
são tantas cidades em uma só
que só conheço a menor
que só conheço a pior
Ah, querida leitora, prezado leitor. Se tiveste paciência para até aqui acompanhar-me, dir-te-ei o que me moveu a escrever estas parcas laudas: vinte palavras, leitora, vinte palavrinhas, leitor, que me calaram fundo na magrugada em que as li:
Cláudio Feldman, ao comentar os Hard Kais no novo livro de Simão, Matou Bashô E Foi Ao Cinema, foi o responsável pela minha insônia. Ó Simão, além do Bashô, manda o Brinca também pro Cláudio. Eu empresto o meu exemplar. Pra copiar.
A referência cinematográfica do título não é gratuita: underground e escrachado, Simão mata o pai Bashô e, se não reinventa, redimensiona o haicai e o poema-escracho, escrachando aquele e sobrecarregando de finíssimo lirismo este, como no metalinguístico "Súbito Aguaceiro":
Libertam-se libélulas
crisálidas de cristal
sob sol insólito
e eu meio bundão
cansado de fazer
tanta aliteração
Observe-se que há dois poemas, imbricados, o segundo comentando o primeiro, subvertendo o rigor métrico ortodoxo, porém conservando uma musicalidade expressiva, como neste "Flores de Cerejeira", onde o caráter oriental da forma é atropelado pela realidade telúrica que cerca a criação poética:
Olho para as flores
Olho e as flores caem
Olho e as flores riem
Brincadeira:
nessa porra de cidade
nem existe cerejeira!
Filiado à milenar tradição do escracho, Bashô traz como apêndice Karalhokê, 40 haicais de fazer corar os catecismos do velho Zéfiro: das manjadissimas Papai e Mamãe e Barba, Cabelo e Bigode até as pós-modernas Nintendo e Realidade Virtual, Simão inventaria as posições do jogo amoroso, com um humor corrosivo, próximo à dor. Um humor que não poupa nem ao poeta nem ao leitor: lírica escrachada. Um conceito que supera, porque contempla, as definições de poesia satírica, poesia burlesca, poesia erótica e cognatos, reunindo sob seu manto uma poesia com todas as qualidades técnicas intrínsecas, mas com um motivo patente, desmascarado, que não deixa margem a segundas leituras: escracho. Uma redução do caráter múltiplo da poesia a uma condição linear, prosaica? Absolutamente. A permanência e a universalidade do poema-escracho residem exatamente na coragem do poeta de lançar mão, com arte superior, do momentâneo ou do ridículo para eternizar-se.
sei que escrevo pra mim mesmo
E não havia sequer vestígios do remorso elementar com que é tratada a cultura aldeã. Dessacralizar a pasmaceira geral era a palavra de ordem daquele exército individual:
caldeirada de bodó
moqueca de jaraqui
filé de tucunaré
costela de tambaqui
suco de jenipapo
batida de buriti
creme de graviola
sorvete de açaí
e no final do embate
a diarreia à la carte
Nem o guaraná velho de guerra era poupado:
no mercado central
turista quer guaraná
coitado pensa que é fácil
fazer pica levantar
Em Ócio dos Ofídios predomina um lirismo comprometido com um 1978 que parecia não ter fim. À maneira de Bacellar, poemas dedicados às frutas amazônicas, terenas, andirás e o belo "Distrito
Industrial". Ecológico antes da moda, jamais chato. Os poemas de Carajo retomam a lírica escrachada, em sintonia com a manhã anunciada:
estava tão excitado
que nem tirou a chuteira
mordeu os seios com força
quase arrancou os mamilos
meteu o dedo na xana
arrebentou o clitóris
ainda se não bastasse
a ejaculação foi precoce
agora quer o divórcio
a mulher do torturador
Há registros de uma insuspeita alegria, denunciada pelas referências infantis que pedem uma algazarra ao fundo:
Ivo ganhou uma ave
a ave de Ivo voa
baleei a ave do Ivo
Ivo ficou puto
Ivo me dedou pro velho
Ivo é um viado
Ou:
O cravo transou a rosa
debaixo de uma sacada
o cravo saiu sorrindo
a rosa descabaçada
Essa alegria não disfarçada tem seu contraponto natural na placidez onírica de um poema que tem tudo para passar desapercebido em sua singeleza, se não despertasse o leitor com o vigor das palavras escolhidas:
era dia de S. Cosme
com crianças e cirandas
vestias uma camisola
recendendo a lavanda
foi sonho ou foi delírio
a trepada na varanda?
Em Miss Heartbreak a persona lírica é feminina e o poema desenvolve-se de maneira uniforme e sequenciada: da primeira dentição ao primeiro aborto, passando pelas experiências sensoriais mais elementares – a masturbação ao som de Eric Clapton, o primeiro porre, as paixões adolescentes, overdose, ácido, sodomia, cursinho, feminismo – até o fim:
e partiu assim de repente
deixando um vago na gente
O poema "Loba das Estepes" sintetiza o pensamento de Miss Heartbreak:
os homens me temem pelo que represento
subvertendo o jogo secular do jugo
(...)
para que da triste memória
do passado tão recente
se dê à luz uma nova mística feminina
e que eles de repente
percebam
que trinta paus não valem uma vagina
Fecha o volume o maiúsculo Trastes & Contraste, ultrassonografia poética desta cidade maluca:
são tantas cidades em uma só
que só conheço a menor
que só conheço a pior
Ah, querida leitora, prezado leitor. Se tiveste paciência para até aqui acompanhar-me, dir-te-ei o que me moveu a escrever estas parcas laudas: vinte palavras, leitora, vinte palavrinhas, leitor, que me calaram fundo na magrugada em que as li:
Esperamos que Simão Pessoa, porém, evolua sua linguagem poética, para que seu casamento com o sarcasmo não acabe em divórcio.
Cláudio Feldman, ao comentar os Hard Kais no novo livro de Simão, Matou Bashô E Foi Ao Cinema, foi o responsável pela minha insônia. Ó Simão, além do Bashô, manda o Brinca também pro Cláudio. Eu empresto o meu exemplar. Pra copiar.
A referência cinematográfica do título não é gratuita: underground e escrachado, Simão mata o pai Bashô e, se não reinventa, redimensiona o haicai e o poema-escracho, escrachando aquele e sobrecarregando de finíssimo lirismo este, como no metalinguístico "Súbito Aguaceiro":
Libertam-se libélulas
crisálidas de cristal
sob sol insólito
e eu meio bundão
cansado de fazer
tanta aliteração
Observe-se que há dois poemas, imbricados, o segundo comentando o primeiro, subvertendo o rigor métrico ortodoxo, porém conservando uma musicalidade expressiva, como neste "Flores de Cerejeira", onde o caráter oriental da forma é atropelado pela realidade telúrica que cerca a criação poética:
Olho para as flores
Olho e as flores caem
Olho e as flores riem
Brincadeira:
nessa porra de cidade
nem existe cerejeira!
Filiado à milenar tradição do escracho, Bashô traz como apêndice Karalhokê, 40 haicais de fazer corar os catecismos do velho Zéfiro: das manjadissimas Papai e Mamãe e Barba, Cabelo e Bigode até as pós-modernas Nintendo e Realidade Virtual, Simão inventaria as posições do jogo amoroso, com um humor corrosivo, próximo à dor. Um humor que não poupa nem ao poeta nem ao leitor: lírica escrachada. Um conceito que supera, porque contempla, as definições de poesia satírica, poesia burlesca, poesia erótica e cognatos, reunindo sob seu manto uma poesia com todas as qualidades técnicas intrínsecas, mas com um motivo patente, desmascarado, que não deixa margem a segundas leituras: escracho. Uma redução do caráter múltiplo da poesia a uma condição linear, prosaica? Absolutamente. A permanência e a universalidade do poema-escracho residem exatamente na coragem do poeta de lançar mão, com arte superior, do momentâneo ou do ridículo para eternizar-se.