Amigos da Alcova

domingo, 29 de maio de 2022

Paisagem pelo telefone

 

João Cabral de Melo Neto (1920-1999)

 

Sempre que no telefone

me falavas, eu diria

que falavas de uma sala

toda de luz invadida,

 

sala que pelas janelas,

duzentas, se oferecia

a alguma manhã de praia,

mais manhã porque marinha,

 

a alguma manhã de praia

no prumo do meio-dia,

meio-dia mineral

de uma praia nordestina,

 

Nordeste de Pernambuco,

onde as manhãs são mais limpas,

Pernambuco do Recife,

de Piedade, de Olinda,

 

sempre povoado de velas,

brancas, ao sol estendidas,

de jangadas, que são velas

mais brancas porque salinas,

 

que, como muros caiados

possuem luz intestina,

pois não é o sol quem as veste

e tampouco as ilumina,

 

mais bem, somente as desveste

de toda sombra ou neblina,

deixando que livres brilhem

os cristais que dentro tinham.

 

Pois, assim, no telefone

tua voz me parecia

como se de tal manhã

estivesses envolvida,

 

fresca e clara, como se

telefonasses despida,

ou, se vestida, somente

de roupa de banho, mínima,

 

e que por mínima, pouco

de tua luz própria tira,

e até mais, quando falavas

no telefone, eu diria

 

que estavas de todo nua,

só de teu banho vestida,

que é quando tu estás mais clara

pois a água nada embacia,

 

sim, como o sol sobre a cal

seis estrofes mais acima,

a água clara não te acende:

libera a luz que já tinhas.


domingo, 15 de maio de 2022

Balada das três mulheres do sabonete Araxá


Manuel Bandeira (1886-1868)


 

As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam.

Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

 

Que outros, não eu, a pedra cortem

Para brutais vos adorarem,

Ó brancaranas azedas,

Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata

Ou celestes africanas:

Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!

São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?

São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?

São as três Marias?

 

Meu Deus, serão as três Marias?

 

A mais nua é doirada borboleta.

Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e nunca mais telefonava.

Mas se a terceira morresse... Oh, então nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim!

Se me perguntassem: Queres ser estrela? queres ser rei? queres uma ilha no Pacífico? um bangalô em Copacabana?

Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!


domingo, 1 de maio de 2022

Soneto


Gregório de Matos (1623-1696)

Desaires da formosura com as pensões 

da natureza ponderadas na mesma dama

 

Rubi, concha de perlas peregrina,

Animado cristal, viva escarlata,

Duas safiras sobre lisa prata,

Ouro encrespado sobre prata fina.

 

Este rostinho é de Caterina;

E porque docemente obriga, e mata,

Não livra o ser divina em ser ingrata,

E raio a raio os corações fulmina.

 

Viu Fábio uma tarde transportado

Bebendo admirações, e galhardias,

A quem já tanto amor levantou aras:

 

Disse igualmente amante, e magoado:

Ah muchacha gentil, que tal serias,

Se sendo tão formosa não cagaras!

 

               


Voyeurs desde o Natal de 2009