Amigos da Alcova

sábado, 31 de dezembro de 2022

Fábula

 Mano Melo

(Pra se espalhar nos mictórios de butiquins e outros afins)

 

 

Era uma vez um jacaré careta que se chamava jacareta

E que gostava muito de inventar umas histórias de buceta

Até que um dia teve uma crise de atos falhos

E ao invés de histórias de buceta

Passou a inventar umas histórias de caralho

 

Vivia uma vidinha dessas que não lusca nem ofusca

Dividido entre a sua dificuldade de carinho

E o amor que dedicava ao seu fusca

Na traseira do carrinho pendurou um plástico: fofinho

 

E assim de ato falho em ato falho

Trocando alhos por bugalhos e bucetas por caralhos

Jacareta – o jacaré careta

Trocou seu nome para jacaralho – o jacaré caralho



domingo, 11 de dezembro de 2022

Gandaia

 

Bruna Lombardi

 

amor, socorre

me arranca a roupa, me salva

mexe comigo, me bole

me lava

 

me tira essas coisas todas da cabeça

me tira a saia

você vai ver que eu sou palhaça à beça

que eu gosto de arruaça e de gandaia

 

amor me acode

deixa eu dançar

nas feiras, nas rodas

desenfrear de todo esse prazer que explode

 

das liberdades, meu amor, eu quero todas.


sábado, 26 de novembro de 2022

Bola de Cristal

 

                              Eduardo Kac

 


vejo que uma grande pika incandescente

se ergue em direção à boceta da terra

é o princípio de uma nova era

nela se entenderão as coisas boas da vida

em todos os sentidos

a palavra sacanagem perderá seu sentido sórdido

sacanagem será sacanagem

vida será vida mesmo

e a poesia se fará necessária

como nunca o foi em toda a história

 

sábado, 5 de novembro de 2022

Cidra, ciúme


Soror Maria do Céu (1658-1753)

 

É ciúmes a Cidra,

E indo a dizer ciúmes disse Hidra,

Que o ciúme é serpente,

Que espedaça seu louco padecente,

Dá-lhe um cento de amor o apelido,

Que o ciúme é amor, mas mal sofrido,

Vê-se cheia de espinhos e amarela,

Que piques e desvelos vão por ela,

Já do forno no lume,

Cidra que foi zelo, senão foi ciúme,

Troquem, pois, os amantes, e haja poucos,

Pelo zelo de Deus, ciúmes loucos.

  

domingo, 9 de outubro de 2022

Antropofagia

 Carvalho Junior (1855-1879)

 


Mulher! ao ver-te nua, as formas opulentas

Indecisas luzindo à noite, sobre o leito,

Como um bando voraz de lúbricas jumentas,

Instintos canibais refervem-me no peito.

 

Como a besta feroz a dilatar as ventas

Mede por dar-lhe o bote a jeito,

Do meu fúlgido olhar às chispas odientas

Envolvo-te e, convulso, ao seio meu t’estreito:

 

E ao longo de teu corpo elástico, onduloso,

Corpo de cascavel, elétrico, escamoso,

Em toda essa extensão pululam meus desejos,

 

– Os átomos sutis, – os vermes sensuais,

Cevando a seu talante as fomes bestiais

Nessas carnes febris, – esplêndidos sobejos!

 


sábado, 24 de setembro de 2022

Quando canta a Maldonado

 

Gonçalves Crespo (1846-1883)

 

 

Quando canta a Maldonado

E os quadris saracoteia,

Não é mulher, é sereia,

Não é mulher, é o pecado.

 

Ao vê-la, pois, enleado

Perco o siso, o verbo, a ideia,

E um desejo audaz se enleia

Neste peito meu bronzeado.

 

Chamei-te sereia! engano!

Nunca tolice maior

Borbotou do lábio humano.

 

Que toda a sereia, flor,

Finda em peixe... e ou eu me engano,

Ou tu acabas... melhor.

 


domingo, 28 de agosto de 2022

A menina e a estátua

 

Cecília Meireles (1901-1964)

 

 

A menina quer brincar com a estátua da fonte,

que é uma criança nua, em cuja cabeça os passarinhos

pousam, depois do banho,

antes de voarem para longe.

 

A menina, com muita precaução,

toca o braço da estátua,

e fala com ela essas coisas com outro sentido

que as crianças dizem umas às outras,

ou aos objetos com que conversam,

ou a si mesmas, quando estão sozinhas.

 

A menina insiste com a estátua,

convida-a a descer do plinto,

passa o dedo pelos seus pés de bronze,

examinando-os e persuadindo-a.

 

E diante de tal silêncio,

fica séria e preocupada,

mira a estátua de perto,

como a um pequeno deus misterioso,

caminha de costas, mirando-a,

e fica de longe a mirá-la,

por um momento prolongado e respeitoso.

 

 

domingo, 14 de agosto de 2022

A fome e o amor

 

Augusto dos Anjos (1884-1914)

A um Monstro

 

Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,

Receando outras mandíbulas a esbanjem,

Os dentes antropófagos que rangem,

Antes da refeição sanguinolenta!

 

Amor! E a satiríases sedenta,

Rugindo, enquanto as almas se confrangem,

Todas as danações sexuais que abrangem

A apolínica besta famulenta!

 

Ambos assim, tragando a ambiência vasta,

No desembestamento que os arrasta,

Superexcitadíssimos, os dois

 

Representam, no ardor dos seus assomos,

A alegoria do que outrora fomos

E a imagem bronca do que inda hoje sois!

 


quinta-feira, 21 de julho de 2022

Lésbia

 

Cruz e Sousa (1861-1898)

 

Cróton selvagem, tinhorão lascivo,

planta mortal, carnívora, sangrenta,

da tua carne báquica rebenta

a vermelha explosão de um sangue vivo.

 

Nesse lábio mordente e convulsivo,

ri, ri, risadas de expressão violenta

o Amor, trágico e triste, e passa, lenta,

a morte, o espasmo gélido, aflitivo...

 

Lésbia nervosa, fascinante e doente,

cruel e demoníaca serpente

das flamejantes atrações do gozo.

 

Dos teus seios acídulos, amargos,

fluem capros aromas e os letargos,

os ópios de um luar tuberculoso...



sábado, 25 de junho de 2022

É como um deus, é mais que um deus

 Catulo (87-54 a.C)*

 

É como um deus, é mais que um deus

(Sem blafêmia) aquele que pode

Sentar-se à sua frente,

Ouvi-la e contemplá-la,

A sorrir docemente.

 

Só eu, pobre, não posso: esvaem-se

Os sentidos, assim que a vejo,

Lésbia: no mesmo ato,

Sinto um nó na garganta,

Paralisa-se a língua.

 

Uma chama febril rastilha

Nos membros; de dentro do ouvido,

Um zumbido ressoa

Na orelha e uma noite

Gêmea vela os meus olhos.

 

O ócio lhe faz mal, Catulo;

O ócio exacerba os sentidos,

O ócio já perdeu

Reis e levou cidades

Felizes à ruína.

(Trad. Décio Pignatari)

 

(*) Adaptação de um poema de Safo (séc VII- séc VI a.C.).



sábado, 11 de junho de 2022

A noiva

 

Murilo Mendes (1901-1975)

 

Clotilde, moça morena e sacudida,

Fica a tarde inteira na janela

Olhando a reta interminável da rua.

 

Todas as irmãs dela se casaram.

Clotilde fica esperando,

Esperando não sei quem.

 

Quando alguma moça se casa no bairro

Clotilde vai à igreja espiar,

Volta com os olhos maiores.

Nesse dia

Ela não fala com ninguém.

Quando nasce um sobrinho de Clotilde

Ela estremece da cabeça aos pés.

 

A noite chega

Remexendo os quadris.

Os casais passam na rua

Engolindo sombras, tontos de calor e de amor.

O cheiro das magnólias

Abafa debaixo do cheiro dos sovacos.

A curva do mar balança.

Uns sons de maxixe violento

Vêm do clube “Jasmin do Amor”.

A moça morena cisma na cama.

 

De repente

Um golpe de vento brusco

Entra com força no quarto,

Suspende árvores lá fora, quebra a vidraça.

Um ruído vem rodando vem rodando.

E uma visagem

Sem cheiro nem cor nem peso

Planta-se em frente de Clotilde.

As meias caem das pernas da moça,

A combinação de rendas cai do seu corpo.

A visagem fala.

 

“Mulher eu vim te buscar

Para as núpcias do fogo.

Haverias de ficar

Toda a vida na janela

Consumindo tua beleza?

O volume do teu seio

Pede o ímã de outros dedos...

O cheiro do teu cabelo

Não é feito pro travesseiro.

A noite do teu sovaco

Não é feita pra amanhecer.

O sangue de tuas veias

Noutro corpo há de ferver.

O teu hálito cheiroso

Outro tem que o respirar.

A luz grande de teus olhos

Vai nascer em outros olhos.

Vou te levar pro teu noivo

Que há muito tempo te espera

Desde antes tu nasceres.

Ele é forte e bonitão,

A mulher que olhou pra ele

Sente logo um arrepio.

Há muito tempo teu corpo

Pede alguém que te complete,

Venha do mar ou da terra,

Venha do fogo ou do céu.

Isto muito bem se lê

Na reza do teu olhar.

Dize adeus a Botafogo,

Ao retrato da tua mãe

Que eu vou te levar agora

Para as núpcias do fogo.”

 

Houve um silêncio maior

Do que o existente no mundo

Antes da invenção das radiolas.

E nunca mais ninguém viu

Clotilde nem a visagem.



domingo, 29 de maio de 2022

Paisagem pelo telefone

 

João Cabral de Melo Neto (1920-1999)

 

Sempre que no telefone

me falavas, eu diria

que falavas de uma sala

toda de luz invadida,

 

sala que pelas janelas,

duzentas, se oferecia

a alguma manhã de praia,

mais manhã porque marinha,

 

a alguma manhã de praia

no prumo do meio-dia,

meio-dia mineral

de uma praia nordestina,

 

Nordeste de Pernambuco,

onde as manhãs são mais limpas,

Pernambuco do Recife,

de Piedade, de Olinda,

 

sempre povoado de velas,

brancas, ao sol estendidas,

de jangadas, que são velas

mais brancas porque salinas,

 

que, como muros caiados

possuem luz intestina,

pois não é o sol quem as veste

e tampouco as ilumina,

 

mais bem, somente as desveste

de toda sombra ou neblina,

deixando que livres brilhem

os cristais que dentro tinham.

 

Pois, assim, no telefone

tua voz me parecia

como se de tal manhã

estivesses envolvida,

 

fresca e clara, como se

telefonasses despida,

ou, se vestida, somente

de roupa de banho, mínima,

 

e que por mínima, pouco

de tua luz própria tira,

e até mais, quando falavas

no telefone, eu diria

 

que estavas de todo nua,

só de teu banho vestida,

que é quando tu estás mais clara

pois a água nada embacia,

 

sim, como o sol sobre a cal

seis estrofes mais acima,

a água clara não te acende:

libera a luz que já tinhas.


domingo, 15 de maio de 2022

Balada das três mulheres do sabonete Araxá


Manuel Bandeira (1886-1868)


 

As três mulheres do sabonete Araxá me invocam, me bouleversam, me hipnotizam.

Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

 

Que outros, não eu, a pedra cortem

Para brutais vos adorarem,

Ó brancaranas azedas,

Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata

Ou celestes africanas:

Que eu vivo, padeço e morro só pelas três mulheres do sabonete Araxá!

São amigas, são irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Araxá?

São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?

São as três Marias?

 

Meu Deus, serão as três Marias?

 

A mais nua é doirada borboleta.

Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida, dava pra beber e nunca mais telefonava.

Mas se a terceira morresse... Oh, então nunca mais a minha vida outrora teria sido um festim!

Se me perguntassem: Queres ser estrela? queres ser rei? queres uma ilha no Pacífico? um bangalô em Copacabana?

Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca. Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!


domingo, 1 de maio de 2022

Soneto


Gregório de Matos (1623-1696)

Desaires da formosura com as pensões 

da natureza ponderadas na mesma dama

 

Rubi, concha de perlas peregrina,

Animado cristal, viva escarlata,

Duas safiras sobre lisa prata,

Ouro encrespado sobre prata fina.

 

Este rostinho é de Caterina;

E porque docemente obriga, e mata,

Não livra o ser divina em ser ingrata,

E raio a raio os corações fulmina.

 

Viu Fábio uma tarde transportado

Bebendo admirações, e galhardias,

A quem já tanto amor levantou aras:

 

Disse igualmente amante, e magoado:

Ah muchacha gentil, que tal serias,

Se sendo tão formosa não cagaras!

 

               


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