Amigos da Alcova

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Eu sinto que nasci para o pecado

Gilka Machado (1893-1980)

  

Eu sinto que nasci para o pecado,

se é pecado, na Terra, amar o Amor;

anseios me atravessam, lado a lado,

numa ternura que não posso expor.

 

Filha de um louco amor desventurado,

trago nas veias lírico fervor,

e se meus dias à abstinência hei dado,

amei como ninguém pode supor.

 

Fiz do silêncio meu constante brado,

e ao que quero costumo sempre opor

o que devo, no rumo que hei traçado.

 

Será maior meu gozo ou minha dor,

ante a alegria de não ter pecado

e a mágoa da renúncia deste amor?!…


sábado, 14 de novembro de 2020

Se tu viesses ver-me...

Florbela Espanca (1894-1930)

 

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,

A essa hora dos mágicos cansaços,

Quando a noite de manso se avizinha,

E me prendesses toda nos teus braços...

 

Quando me lembra: esse sabor que tinha

A tua boca... o eco dos teus passos...

O teu riso de fonte... os teus abraços...

Os teus beijos... a tua mão na minha...

 

Se tu viesses quando, linda e louca,

Traça as linhas dulcíssimas dum beijo

E é de seda vermelha e canta e ri

 

E é como um cravo ao sol a minha boca...

Quando os olhos se me cerram de desejo...

E os meus braços se estendem para ti...


domingo, 25 de outubro de 2020

Moreninha


Bruno Seabra (1837-1876)


– Moreninha, dás-me um beijo?
– E o que me dá, meu senhor?
– Este cravo...
– Ora, esse cravo!
De que me serve uma flor?
Há tantas flores nos campos!
Hei de agora, meu senhor,
dar-lhe um beijo por um cravo?
É barato; guarde a flor.

– Dá-me o beijo, moreninha,
dou-te um corte de cambraia.
– Por um beijo tanto pano!
Compro de graça uma saia!
Olhe que perde na troca,
Como eu perdera co’a flor;
tanto pano por um beijo...
sai-lhe caro, meu senhor.

– Anda cá... ouve um segredo...
– Ai, pois quer fiar-se em mim?
Deus o livre; eu falo muito,
toda mulher é assim...
E um segredo... ora um segredo...
Pelos modos que lhe vejo
quer o meu beijo de graça.
Um segredo por um beijo?...

– Quero dizer-te aos ouvidos
que tu és uma rainha...
– Acha, pois? E o que tem isso?
Quer ser rei, por vida minha?
– Quem dera que tu quisesses...
– Não duvide, que o farei;
meu senhor, case com ela,
a rainha o fará rei...

Casar-me?... Inda sou tão moço...
– Como é criança esta ovelha!
Pois eu p’ra beijar crianças,
adeusinho, já sou velha!



segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Opiniões

Guimarães Passos (1867-1909)

 

Um filósofo dizia

A um seu amigo querido,

Que jamais compreendia

Como um amante queria

Sempre o gozo repetido.

 

“É um abuso! E eu sempre vejo

A mesma coisa gozada

Ter sempre maior desejo,

Pois se o beijo é o mesmo beijo,

O beijo não vale nada...

 

Onde está a novidade?

O que ontem foi, hoje é.

Falo com sinceridade:

Não compreendo a vontade...

Você, que diz, seu José?”

 

Diz o outro: “Seu Raimundo,

Cada qual tem sua norma

De gozar por este mundo:

A mesma coisa no fundo,

É diferente na forma”.

 

 

domingo, 20 de setembro de 2020

Décima IV

António Lobo de Carvalho (1730-1787)

Improvisado na igreja da Madalena, assistindo com um seu amigo à pomposa festa que aí faziam as colarejas de Lisboa

 

Todos quantos aqui estão,

excepto somente nós,

são do vício mais atroz

a mais perversa união:

o que é homem é cabrão;

as mulheres, sem disputas,

têm três diversas condutas:

as velhas são feiticeiras,

as outras, alcoviteiras,

as raparigas são putas.



terça-feira, 7 de julho de 2020

Profissão de fé




Carvalho Junior (1855-1879)


Odeio as virgens pálidas, cloróticas,
Beleza de missal que o romantismo
Hidrófobo apregoa em peças góticas,
Escritas nuns acessos de histerismo.

Sofismas de mulher, ilusões ópticas,
Raquíticos abortos de lirismo,
Sonhos de carne, compleições exóticas,
Desfazem-se perante o realismo.

Não servem-me esses vagos ideais
Da fina transparência dos cristais,
Almas de santa e corpo de alfenim.

Prefiro a exuberância dos contornos,
As belezas da forma, seus adornos,
A saúde, a matéria, a vida enfim.



domingo, 17 de maio de 2020

Nome II



Olga Savary (21/5/1933 – 15/5/2020)


Diria que amor não posso
dar-te de nome, arredia
é o que chamas de posse
à obsessão que te mostra
ao vale das minhas coxas
e maior é o apetite
com que te morde as entranhas
este fruto que se abre
e ele sim é que te come,
que te come por inteiro
mesmo não sendo repasto
o fruto teu que degluto,
que de semente me serve
à poesia.



sábado, 9 de maio de 2020

Não passo por esta rua




Laurindo Rabelo (1826-1864)


Não passo por esta rua,
Que não veja esta perua,
Na porta com dois e três;
Que fodas não dá no mês
Aquele cono tão quente!
E chega a ser tão potente
A maldita da cachorra,
Que no cu sempre tem porra,
Na porta sempre tem gente!



sábado, 28 de março de 2020

Soneto 143 higiênico



Glauco Mattoso


Se o orifício anal é um olho cego,
que pisca e vai fazendo vista grossa
a tudo que entra e sai, que entala ou roça,
três vezes cego sou. Que cruz carrego!

Porém não pela mão me prende o prego,
mas pela língua suja, que hoje coça
o cu dos outros, feito um limpa-fossa,
e as pregas, como esponja escrota, esfrego.

O “beijo negro” é o último degrau
desta degradação em que mergulho,
maior humilhação eu chupar pau.

Sujeito-me com náusea, com engulho,
ao paladar fecal e ao cheiro mau,
e, junto com a merda, engulo o orgulho.



terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Fragmento de Don Juan



Lord Byron (1788-1824)


No começo, a mulher ama o amante;
Finda a paixão, passa a amar o amor,
Que se transforma em hábito constante,
Como luva folgada de se pôr.
No início, um homem só já é bastante
(Como se prova sempre com quem for);
Depois, do que ela gosta é do plural,
Que uma adição enorme não faz mal.

Trad.: Décio Pignatari

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Até que a morte nos separe



                                      Leila Miccolis


Esqueço meu desejo de vingança,
e a mágoa recalcada esqueço até,
se ponho a te afagar o membro flácido
com as pontas dos artelhos
do meu pé.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Dança de Centauras



Francisca Júlia (1871-1920)


Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios,
Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando as lanças,
Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças
Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios.

A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças;
Mil centauras a rir, em lutas e torneios,
Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios
De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas.

Empalidece o luar, a noite cai, madruga...
A dança hípica para e logo atroa o espaço
O galope infernal das centauras em fuga:

É que, longe, ao clarão do luar que empalidece,
Enorme, aceso o olhar, bravo, do heróico braço
Pendente a clava argiva, Hércules aparece...

domingo, 5 de janeiro de 2020

Carnes



Alceu Wamosy (1895-1923)


Pulcras liriais, bizarramente claras,
Carnes divinas, virginais e puras,
Na ostentação de correções preclaras
E de preclaras pompas e brancuras...

Carnes que sois as sacrossantas aras,
De vagas e de ignotas formosuras...
Ó carnes esquisitas, carnes raras,
De esquisitas e raras contexturas!...

Carnes dadas, sem mancha, em holocausto
Ao amor, e do amor florindo ao fausto,
Virgens da tentação, salvas do vício!

Carnes extraordinárias e perfeitas,
Eleitas para um alto gozo — eleitas
Para o prazer e para o sacrifício!...

Voyeurs desde o Natal de 2009