Amigos da Alcova

sábado, 25 de junho de 2022

É como um deus, é mais que um deus

 Catulo (87-54 a.C)*

 

É como um deus, é mais que um deus

(Sem blafêmia) aquele que pode

Sentar-se à sua frente,

Ouvi-la e contemplá-la,

A sorrir docemente.

 

Só eu, pobre, não posso: esvaem-se

Os sentidos, assim que a vejo,

Lésbia: no mesmo ato,

Sinto um nó na garganta,

Paralisa-se a língua.

 

Uma chama febril rastilha

Nos membros; de dentro do ouvido,

Um zumbido ressoa

Na orelha e uma noite

Gêmea vela os meus olhos.

 

O ócio lhe faz mal, Catulo;

O ócio exacerba os sentidos,

O ócio já perdeu

Reis e levou cidades

Felizes à ruína.

(Trad. Décio Pignatari)

 

(*) Adaptação de um poema de Safo (séc VII- séc VI a.C.).



sábado, 11 de junho de 2022

A noiva

 

Murilo Mendes (1901-1975)

 

Clotilde, moça morena e sacudida,

Fica a tarde inteira na janela

Olhando a reta interminável da rua.

 

Todas as irmãs dela se casaram.

Clotilde fica esperando,

Esperando não sei quem.

 

Quando alguma moça se casa no bairro

Clotilde vai à igreja espiar,

Volta com os olhos maiores.

Nesse dia

Ela não fala com ninguém.

Quando nasce um sobrinho de Clotilde

Ela estremece da cabeça aos pés.

 

A noite chega

Remexendo os quadris.

Os casais passam na rua

Engolindo sombras, tontos de calor e de amor.

O cheiro das magnólias

Abafa debaixo do cheiro dos sovacos.

A curva do mar balança.

Uns sons de maxixe violento

Vêm do clube “Jasmin do Amor”.

A moça morena cisma na cama.

 

De repente

Um golpe de vento brusco

Entra com força no quarto,

Suspende árvores lá fora, quebra a vidraça.

Um ruído vem rodando vem rodando.

E uma visagem

Sem cheiro nem cor nem peso

Planta-se em frente de Clotilde.

As meias caem das pernas da moça,

A combinação de rendas cai do seu corpo.

A visagem fala.

 

“Mulher eu vim te buscar

Para as núpcias do fogo.

Haverias de ficar

Toda a vida na janela

Consumindo tua beleza?

O volume do teu seio

Pede o ímã de outros dedos...

O cheiro do teu cabelo

Não é feito pro travesseiro.

A noite do teu sovaco

Não é feita pra amanhecer.

O sangue de tuas veias

Noutro corpo há de ferver.

O teu hálito cheiroso

Outro tem que o respirar.

A luz grande de teus olhos

Vai nascer em outros olhos.

Vou te levar pro teu noivo

Que há muito tempo te espera

Desde antes tu nasceres.

Ele é forte e bonitão,

A mulher que olhou pra ele

Sente logo um arrepio.

Há muito tempo teu corpo

Pede alguém que te complete,

Venha do mar ou da terra,

Venha do fogo ou do céu.

Isto muito bem se lê

Na reza do teu olhar.

Dize adeus a Botafogo,

Ao retrato da tua mãe

Que eu vou te levar agora

Para as núpcias do fogo.”

 

Houve um silêncio maior

Do que o existente no mundo

Antes da invenção das radiolas.

E nunca mais ninguém viu

Clotilde nem a visagem.



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