Amigos da Alcova

domingo, 10 de março de 2024

No cavalo

 

Gilka Machado (1893-1980)

 

Belo e heroico, agitando as veludosas crinas,

meu árdego animal, tens a sofreguidão

do infinito – o infinito haures pelas narinas –

e, sem asas obter, buscas fugir do chão.

 

Domino-te; entretanto, és tu que me dominas.

É um desejo que espera a humana direção

a tua alma, e, transpondo os valos e as campinas,

meu sentimento e o teu se compreendendo vão.

 

Amas o movimento, o perigo, as distâncias;

meigo, sentimental, tens arrojadas ânsias,

em tuas veias corre um férvido calor.

 

Quando em teu corpo forte o frágil corpo aprumo

eu me sinto disposta a lançar-me, sem rumo,

à conquistas da Glória e à conquistas do Amor!



quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Cabeludinho


Manoel de Barros (1916-2014)

 

8.

– Sou uma virtude conjugal

adivinha qual é?

– Um jambo,

um jardim outonal?

– Não.

– Uma louca,

as ruínas de Pompeia?

– Não.

– És uma estátua de nuvens,

o muro das lamentações?

– Não.

– Ai, entonces que reino é o teu, darling?

Me conta te dou fazenda,

me afundo, deixo o cachimbo.

Me conta que reino é o teu?

– Não.

Mas pode pegar em mim que estou uma Sodoma...



domingo, 14 de janeiro de 2024

Vendaval

 

Violeta Branca (1915-2000)

 

Teu desejo de vento

torceu os galhos fortes de minha vontade.

Sou folha tonta,

no giro alucinado

do teu caprichoso amor de vento.

 

Num constante delírio,

rodopio,

rodopio,

rodopio,

como pétala perdida

nas tuas doidas mãos de vento...

 

Da floresta mágica do sonho,

arrancou-me a fantasia de teu pensamento.

 

Sou a árvore mais linda,

árvore que canta

no delicioso desnorteio

 

do abraço morno

dos teus febris braços de vento.



domingo, 24 de dezembro de 2023

Soneto 111 bizarro

 


Glauco Mattoso

 

Coprófilo é quem gosta de excremento.

Pedófilo só trepa com criança.

Defunto fresco em paz jamais descansa

nos braços do necrófilo sedento.

 

Voyeur assiste a tudo, sempre atento

ao exibicionista, que até dança.

O fetichista transa até com trança,

e o masoquista adora sofrimento.

 

Libido, pelo jeito, é mero lodo.

A sensualidade faz sentido

conforme a morbidez sob a qual fodo.

 

Não basta o pé, precisa ser fedido.

Se tenho de escolher, pois, um apodo,

serei um podosmófilo assumido.



domingo, 12 de novembro de 2023

Sonetos Luxuriosos – 6

 

Aretino (1492-1556)

 

Atenta bem, ó tu que amando estás

E a quem turva tão doce empreendimento,

Neste que leva a cabo tal intento

Ledamente fodendo onde lhe apraz.

 

Sem de qualquer escola andar atrás

Por trepar verbi gratia a todo tento,

Fará feito sem-par e a seu contento

O que possa foder sem ser loquaz.

 

Vede como nos braços a levanta

Ele, que as pernas dela tem dos lados

E como de prazer já se quebranta.

 

Não se perturbam por estar cansados.

Mas o jogo lhe dá ardência tanta

Que fodendo queriam-se finados.

 

E retos, sem cuidados,

Ofegam juntos, de prazer frementes,

E enquanto ele durar, estão contentes.

 

(Trad. José Paulo Paes)



domingo, 29 de outubro de 2023

Delírio dos cinquent’anos 2/2

 

Affonso Ávila (1928-2012)

 

esclerose 

o miolo começar a amolecer

o mais continuar duro

 

apetite

provar todos os pratos

eu próprio adicionar o meu tempero

 

décadas

beber do mesmo vinho na mesma ânfora

e ainda me embriagar da sua cânfora

 

fama

dormir na cama

com quem se ama e quem não se ama

 

geociência

percorridas todas as latitudes da cama

conhecidos todos os acidentes do corpo

 

comenda

saber distinguir na medalha o reverso

da medalha

 

eterno retorno

é ontem foi hoje um corpo velho

sobre um corpo novo

ou apenas um corpo sobre outro

corpo



sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Delírio dos cinquent’anos 1/2

 

Affonso Ávila (1928-2012)

 

emannuele 

que minha lira

também delire

e dê bandeira

 

museologia

é de ouro

é de prata

e de pernas preciosas

 

machismo

ainda ser homem bastante

para não resistir às tentações

 

senilidade

semenilidade

 

avoengo

acarinhar meus netos

e as netas de outros avós

 

laurel

não dormir sobre os louros

antes sobre as louras

 


domingo, 24 de setembro de 2023

De ser ditosa se enfada

 

D. Feliciana a D. Anna de Moura

Dona Feliciana de Milão (1629-1705)

 

De ser ditosa se enfada

Quem ditas próprias apura;

Que examinar a ventura

É diligencia arriscada,

Agora, por declarada,

Ficais, madre, escurecida;

Deixais de ser conhecida

Agora que vos mostrais;

E mais ignorante estais

Depois que estais escondida.

 

Pesai-vos, primeiro, mana,

E vireis a achar depois

Que, Anna, mui pesada sois,

Porque sois mui leviana.

Por favor vos desengana

Quem vos culpa a presunção.

Mal pôde haver afeição

Onde não há semelhante;

Pois para amor tão gigante

É vosso amor muito anão.

 

Sois Loba, e parece mal,

Por não ser coisa que quadre,

Que queira a Loba de um padre

Parecer opa real!

Moura sois, e, como tal,

É justo que em vosso amor

Sofrais qualquer dissabor

Se toma tanta licença;

Que vai muita diferença

De uma moura a seu senhor.

 

Mais que louco atrevimento

É disparate cantado

Avaliar por cuidado

O que é só divertimento,

Neste vosso pensamento

Julga o prudente varão

Que é ridícula ambição

Esperar vossa franqueza;

Já que o Lobo vos despreza

que vos estime o Leão.

 

Suspendei vossa carreira,

Pobre barca de pescar;

Que ides meter-vos ao mar

Saído de uma Ribeira.

Não vos engolfeis ligeira,

Pois tendes já descoberto

Que está posta em tal aperto

E em tal perigo estás posta

Que se não derdes à costa,

Dar nos cachopos é certo.

 

Mas destas águas àquelas

Não vedes vós quanto dista?

E não pode ser bem-vista

Quem anda às apalpadelas?

Recolhei as fracas velas

Porque ides mui enganada;

Erraste, por confiada;

Donde podeis entender

Que, errando e sendo mulher,

Ficais por mulher errada.

(Conclusão)

 

domingo, 10 de setembro de 2023

Minha freira, o meu amor

 

O rei a D. Feliciana pelas consoantes das suas décimas

Dom Afonso VI (1643-1843)

 

Minha freira, o meu amor,

O meu enleio amoroso,

Nada tem de primoroso,

Por ser o rei e senhor.

Assim, não vos cause dor,

Que não há disso razão;

Porque esta minha afeição

Nada tem que a desdoura,

Pois adorar a tal Moura

Pôde bem um rei cristão.

 

Nunca podereis achar,

Nem menos podereis ter

Quem me possa merecer

Como ela, nem me adorar,

Para mais inveja dar

A todas, amo a Donna Anna

Por prenda a mais soberana,

E, se em minha graça está,

Anna Felice será

e mais que Felice Anna.

 

Senhora Feliciana

A quem o tempo tirou

O felice e só deixou

A língua que a todos dana:

Pois o tempo desengana

Basta já de requebrar,

Que enjeitada heis de ficar,

Porque sempre foi mofina,

acha que, desde menina,

Vossa estrela vos quis dar.

 

Atrevida, empreendeis guerra

Contra Anna, mimo de amor,

Por lhe usurpar o favor

Do grão monarca da terra;

Mas como nela se encerra

Tanta gala e descrição

Contra as forças de Milão,

Guerreira defende o posto,

E jura pôr-vos no rosto

O nome de um seu irmão.


(Continua)


domingo, 27 de agosto de 2023

A Flor do Sol entretém

 

Angélica de Moura a Dona Feliciana de Milão

Dona Anna de Moura (16??-17??)

 

A Flor do Sol entretém,

Seu resplendor não desdoura,

Porque enquanto tem de Moura

Tanto de Angélica tem.

No seu mal o vosso bem

Tornareis vos converter!...

E podendo escolha ter.

Não que não tendes parelha,

Não fôreis vós cristã velha,

Fôreis mais gentil mulher.

Com rara desigualdade

Vós murchais, ela floresce;

Anna deidade parece,

Feliciana de idade.

Deixai pois essa vaidade

Porque a todos nos enfada,

Pois que sendo só chamada

Ser escolhida queirais,

Maiormente quando estais

Afeita a ser enjeitada.

 

(Continua)

domingo, 13 de agosto de 2023

Meu monarca, o vosso amor

 

Insultos que se trocaram as freiras Dona Feliciana de Milão e Dona Anna de Moura, pelo amor do soberano Dom Afonso VI e por ciúmes, tendo ele prometido à Flor do Sol fazê-la rainha de Portugal.

 

Dona Feliciana de Milão ao Rei

Dona Feliciana de Milão (1629-1705)

 

Meu monarca, o vosso amor

E vosso trato amoroso

Tanto tem de primoroso

Quanto de pai e senhor;

Mas, ainda assim, causa dor

E não com pouca razão

Ver que esta vossa afeição,

Muito tem que a desdoura,

Pois adorais uma moura,

Sendo vós um rei cristão.

 

Freira podeis achar,

Mais digna que esta ter

Fé para vos merecer,

Discrição para adorar;

Isto não é invejar

Essa mais que feliz Anna,

Que posto que soberana

E tão endeusada está.

Anna Felice será,

Mas nunca Felice Anna.

 

(Continua)

domingo, 30 de julho de 2023

Ode

 Soror Violante do Céu (1601-1693)

 

Amante pensamento,

Núncio de amor, terceiro de vontade,

Emulação do vento,

Lisonja da mais triste soledade;

Ministro da lembrança,

Gosto na posse, alívio na esperança,

 

Já que de minhas queixas

A causa idolatrada vás seguindo,

Dize-lhe qual me deixas,

Dize-lhe que estou morta, mas sentindo,

Que pode mal tão forte

Fazer que sinta, ai triste, a mesma morte.

 

Dize-lhe que é já tanto

O pesar de me ver tão dividida,

Que só me causa espanto

A sombra que me segue de uma vida

Tão morta para o gosto

Como viva, ai de mim, para o desgosto!

 

Dize-lhe que me mata

Quem, vendo-me morrer sem resistência,

De socorrer-me trata,

Pois, para quem padece o mal d’ausente,

Que é só remédio, entendo,

Ver o que quer, ou fenecer querendo.

 

Dize-lhe que a memória

Toma por instrumento do meu dano

A já passada glória;

Fazendo o mais suave tão tirano,

Que obtém mais estimado.

Me passa o coração, porque é passado.

 

Dize-lhe que se sabe

O poder de uma ausência rigorosa,

Que a que começa acabe,

Antes que ela me acabe poderosa;

Pois de tal modo a sinto,

Que julgo por eterno o mais sucinto.

 

Dize-lhe que se admite

Rogos de um coração que o segue amante,

Que ver-me solicite,

Apesar do preciso e do distante;

E que tão cedo seja,

Que toda a paixão se torne inveja.

 

Dize-lhe que se acorde

De uns efeitos d’amor que encarecia;

E que todos recorde;

Mais que seja um minuto cada dia,

Pois, eu cada minuto,

Infinitas lembranças lhe tributo.

 

Dize-lhe que até a morte

Assistência contínua lhe ofereces

E que te invejo a sorte;

E enfim se do meu mal te compadeces

Oh, pensamento amigo,

Dize-lhe tudo, ou leva-me contigo.

 

Voyeurs desde o Natal de 2009