Marilda Pedroso
o homem horizontal
é indecifrável como o canto das flores
o homem horizontal
é o mijo e a titica da galinha
imperscrutável
objetivo
temporal no tempo
e com desejo do ar
o homem horizontal
não sabe do canto do ar
das altitudes platiplanas
da transparência dos cantos
que nem a refinaria mais sofisticada
destila
esse licor
esse homem vertical
enquanto velozzzmente
zzzuuummm zzzuuummm zzz uuu mm
na barriga de um Jumbo da Air France
meu corpo horizontal viaja
apoiado num símbolo fêmeo de ar
meu corpo horizontal de ar e terra
que um dia
(e eu tenho certeza)
será comido pela terra
numa noite de verão vagabundo
onde os corpos horizontais das praias
se lambuzam de areia e sol
nessa noite
noite quente
serei vertical
fogo fátuo
e rapidamente
voltarei para o cristal da história
no mármore do jazigo
luta pequena operária pelo teu corpo
corpo corpo
impossivelmente
não corpo
mas como todos os corpos desse mundo
corpo horizontal
como um umbigo do mundo
onde as bocas ardem
na escassez da água da vida
vida prometida vida vida
como se fosse céu terra
onde meu planeta e eu
precisamente brasileira
precisamente da América Latina
como constelações
que não organizo
porque me escapam
pelos dedos da metodologia
ardem minhas narinas de mijo e titica
aqui
aqui em São Paulo
precisamente ao sul minha terra
da poluição constante
onde o corpo horizontal
de alguns guerreiros
há muito estão depositados no fundo da terra
e eu os invejo invejo porque
love is blind
enxertado na história
o corpo horizontal trafega pela noite
em busca das mulheres atlânticas
que com seus corpos horizontais
alimentam o desespero e a solidão
somente no corpo horizontal
indecifrável na sua singularidade
a idade da flor seu canto
e toda a linguagem
procuram o vértice cósmico
como um brinquedo quebrado
que deve ser armado rearmado
e devorado em sua extensão de profundidade
meu corpo horizontal
é teu — companheiro
minha ansiedade também é tua
como todos os corpos horizontais são meus
na troca de água e fogo desse mundo
onde a boca explcnde o canto
e o horizonte em profundidade é vértice
corpo do meu irmão Egberto Gismonti
que em seu recinto de homem
só cabe a música e o resto
são cristais e sombras
corpo do meu amigo Bráulio Pedroso
de ossos excessivos e doentio
e uma boca plena de estórias
e a agonia da historicidade
em troca do amor humano
corpo do meu amado
corpo do futuro do amanhã
do imediato
te quero aqui agora
na produção desse poema enlouquecido
a meu lado sim e distante
me amando agora
como nenhuma mulher foi amada
porque tua barba é melaço
teus olhos duas banheiras de mel
tua mão direita a da cura
e a esquerda de homem
de homem horizontal
gozando hoje a história
e o meu amor de mulher
corpo de Geraldo Eduardo Ribeiro Carneiro
Geraldinho — meu parceiro
poeta da beleza das avenidas
mas não dos quintais da fome
poeta ensaísta letrista diretor de shows
para esconder a poesia
de seu corpo em chamas
corpo de Eduardo Mascarenhas
de discurso horizontal e vertical
corpo de dança boca de terra
meu amigo imediato e distante
onde meço o ganho e a perda
e a seu lado assisto meu enterro
quando os cadáveres precisam ser enterrados
e a minha boca tem medo
corpo gordo de minha mãe
de boca escassa
e de um refinamento
onde minha vida pôde explodir um dia
corpo seco de meu pai
corpo tímido — vertical
desvairado de amor
impossivelmente dito confessado
corpo do primeiro namorado
corpo horizontal que ousou tocar-me
e que da minha buceta
fez escorrer um caldo morno
e ensinou meu corpo tremer
o inconsciente da minha espécie
e o meu desejo de mulher
corpo vertical de Giselda Leirner
corpo discursivo
metafisicisando o ar
num desmaio de fêmea
a mão precisa para o traço do desenho
e um apelo do corpo horizontal
buscando Paris Nova York Israel
e o mergulho no homem amado
minha amiga Giselda
minha amiga
corpos de todos os homens
e de todas as mulheres
de todo esse mundo
eu vos pertenço para sempre
eu vos pertenço para sempre
assim como cada detalhe da minha pátria
assim como cada detalhe
do meu próprio corpo
do meu corpo vertical
do meu corpo horizontal
e de todos os movimentos ascendentes
e descendentes
em suas pulsações
ora em direção à vida
ora em direção à morte
em seus movimentos indispensáveis
gerando cosmos enquanto a Via Láctea
explode todas as noites
sobre meu corpo de terra
e de luz
em Maputo num extremo da África
o corpo de Ruy Guerra trabalha por mim
e a despeito de mim mundo
mundo simultâneo
e absurdo
eu estou aqui