Amigos da Alcova

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

De Catulo a Simão Pessoa – dois mil anos de poesia e escracho 4/5


Zemaria Pinto


Bocage –  Mas não se pode falar em lírica escrachada sem citar o português – contrariando todos os prognósticos – Bocage (1765-1805), o inesquecível herói de todas as histórias de sacanagem do pessoal com mais de 30. Condenado pela Inquisição por “pregar ideias liberais em papéis sediciosos”, Bocage morreu humilhado e miserável em plena atividade criadora. Sonetista exímio, carnavalizou a pétrea forma em escracho derramado:

               Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
               Puta tem sido muita gente boa;
               Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
               Milhões de vezes putas têm reinado:


               Dido foi puta, e puta dum soldado;
               Cleópatra por puta alcança a coroa;
               Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
               O teu cono não passa por honrado:


               Essa da Rússia imperatriz famosa,
               Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
               Entre mil porras expirou vaidosa:


               Todas no mundo dão a sua greta:
               Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
               Que isto de virgo e honra é tudo peta.

Bocage, como bom escrachado, mesmo na morte ri de si mesmo. Ao famoso

               Já Bocage não sou!... À cova escura
               Meu estro vai parar desfeito em vento...
               Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
               Leve me torne sempre a terra dura.

figurinha carimbada em qualquer antologia escolar, ele contrapõe, com uma piscadela ao cúmplice leitor:

               Lá quando em mim perder a humanidade
               Mais um daqueles, que não fazem falta,
               Verbi gratia – o teólogo, o peralta,
               Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:


               Não quero funeral comunidade,
               Que engrole sub venites em voz alta;
               Pingados gatarrões, gente de malta,
               Eu também vos dispenso a caridade:


               Mas quando ferrugenta enxada idosa
               Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
               Lavre-me este epitáfio mão piedosa:


               “Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
               Passou vida folgada e milagrosa;
               Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.”

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