Amigos da Alcova

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Corpo Horizontal

Marilda Pedroso



o homem horizontal
é indecifrável como o canto das flores
o homem horizontal
é o mijo e a titica da galinha
imperscrutável
                                objetivo
temporal no tempo
                   e com desejo do ar
o homem horizontal
não sabe do canto do ar
das altitudes platiplanas
da transparência dos cantos
que nem a refinaria mais sofisticada
destila
              esse licor
                              esse homem vertical

enquanto velozzzmente
                       zzzuuummm    zzzuuummm    zzz    uuu   mm
na barriga de um Jumbo da Air France
meu corpo horizontal viaja
apoiado num símbolo fêmeo de ar
meu corpo horizontal de ar e terra
que um dia
                  (e eu tenho certeza)
será comido pela terra
numa noite de verão vagabundo
onde os corpos horizontais das praias
se lambuzam de areia e sol
nessa noite
                  noite quente
                                      serei   vertical
                                      fogo       fátuo
e rapidamente
voltarei para o cristal da história
no mármore do jazigo


luta pequena operária pelo teu corpo
corpo                                      corpo
                  impossivelmente
                  não          corpo
mas como todos os corpos desse mundo
corpo horizontal
como um umbigo do mundo
onde as bocas ardem
na escassez da água da vida
vida prometida              vida     vida
como se fosse                céu    terra
onde meu planeta e eu
precisamente brasileira
precisamente da América Latina
como constelações
                               que não organizo
porque me escapam
pelos dedos da metodologia
ardem minhas narinas de mijo e titica
aqui
              aqui em São Paulo
precisamente ao sul                 minha terra
da poluição constante
                           onde o corpo horizontal
de alguns guerreiros
há muito estão depositados no fundo da terra
e eu os invejo                invejo            porque
love is blind
enxertado na história
o corpo horizontal trafega pela noite
em busca das mulheres atlânticas
que com seus corpos horizontais
alimentam o desespero e a solidão


somente no corpo horizontal
indecifrável na sua singularidade
a idade da flor            seu canto
              e toda a linguagem
procuram o vértice cósmico
como um brinquedo quebrado
que deve ser armado       rearmado
e devorado em sua extensão de profundidade


meu corpo horizontal
                                  é teu — companheiro
minha ansiedade também é tua
como todos os corpos horizontais são meus
na troca de água e fogo desse mundo
onde a boca explcnde o canto
e o horizonte em profundidade é vértice


corpo do meu irmão Egberto Gismonti
que em seu recinto de homem
só cabe a música                   e o resto
são cristais             e              sombras


corpo do meu amigo Bráulio Pedroso
de ossos excessivos e doentio
e uma boca plena de estórias
e a agonia da historicidade
em troca do amor humano


corpo do meu amado
corpo do futuro                 do amanhã
                      do imediato
te quero aqui                             agora
na produção desse poema enlouquecido
a meu lado sim                           e distante
me amando agora
como nenhuma mulher foi amada
porque tua barba é melaço
teus olhos duas banheiras de mel
tua mão direita                      a da cura
e a esquerda                        de homem
                  de homem horizontal
gozando hoje a história
e o meu amor de mulher


corpo de Geraldo Eduardo Ribeiro Carneiro
               Geraldinho — meu parceiro
               poeta da beleza das avenidas
               mas não dos quintais da fome
poeta ensaísta letrista diretor de shows
               para esconder a poesia
               de seu corpo em chamas


corpo de Eduardo Mascarenhas
de   discurso   horizontal   e   vertical
corpo de dança           boca de terra
     meu amigo imediato e distante
     onde meço o ganho e a perda
e a seu lado assisto meu enterro
quando os cadáveres precisam ser enterrados
e a minha boca tem medo


corpo gordo de minha mãe
de boca escassa
e de um refinamento
onde minha vida pôde explodir um dia


corpo seco de meu pai
corpo tímido — vertical
desvairado de amor
impossivelmente dito       confessado


corpo do primeiro namorado
corpo horizontal que ousou tocar-me
e que da minha buceta
fez escorrer um caldo morno
e ensinou meu corpo tremer
o inconsciente da minha espécie
e o meu desejo de mulher


corpo vertical de Giselda Leirner
corpo discursivo
metafisicisando o ar
num desmaio de fêmea
a mão precisa para o traço do desenho
e um apelo do corpo horizontal
buscando Paris Nova York Israel
e o mergulho no homem amado
minha amiga Giselda
minha amiga


corpos de todos os homens
     e de todas as mulheres
         de todo esse mundo
eu vos pertenço para sempre
eu vos pertenço para sempre
assim como cada detalhe da minha pátria
assim como cada detalhe
                              do meu próprio corpo
                              do meu corpo vertical
                              do meu corpo horizontal
e de todos os movimentos         ascendentes
                                                 e descendentes
em suas pulsações
                               ora em direção à vida
                               ora em direção à morte
em seus movimentos indispensáveis
gerando cosmos              enquanto a Via Láctea
                     explode todas as noites
                     sobre meu corpo de terra
                                                e de luz


em Maputo          num extremo da África
o corpo de Ruy Guerra trabalha por mim
e a despeito de mim                         mundo
mundo                                        simultâneo
                        e absurdo
                     eu estou aqui

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