Amigos da Alcova

domingo, 24 de setembro de 2023

De ser ditosa se enfada

 

D. Feliciana a D. Anna de Moura

Dona Feliciana de Milão (1629-1705)

 

De ser ditosa se enfada

Quem ditas próprias apura;

Que examinar a ventura

É diligencia arriscada,

Agora, por declarada,

Ficais, madre, escurecida;

Deixais de ser conhecida

Agora que vos mostrais;

E mais ignorante estais

Depois que estais escondida.

 

Pesai-vos, primeiro, mana,

E vireis a achar depois

Que, Anna, mui pesada sois,

Porque sois mui leviana.

Por favor vos desengana

Quem vos culpa a presunção.

Mal pôde haver afeição

Onde não há semelhante;

Pois para amor tão gigante

É vosso amor muito anão.

 

Sois Loba, e parece mal,

Por não ser coisa que quadre,

Que queira a Loba de um padre

Parecer opa real!

Moura sois, e, como tal,

É justo que em vosso amor

Sofrais qualquer dissabor

Se toma tanta licença;

Que vai muita diferença

De uma moura a seu senhor.

 

Mais que louco atrevimento

É disparate cantado

Avaliar por cuidado

O que é só divertimento,

Neste vosso pensamento

Julga o prudente varão

Que é ridícula ambição

Esperar vossa franqueza;

Já que o Lobo vos despreza

que vos estime o Leão.

 

Suspendei vossa carreira,

Pobre barca de pescar;

Que ides meter-vos ao mar

Saído de uma Ribeira.

Não vos engolfeis ligeira,

Pois tendes já descoberto

Que está posta em tal aperto

E em tal perigo estás posta

Que se não derdes à costa,

Dar nos cachopos é certo.

 

Mas destas águas àquelas

Não vedes vós quanto dista?

E não pode ser bem-vista

Quem anda às apalpadelas?

Recolhei as fracas velas

Porque ides mui enganada;

Erraste, por confiada;

Donde podeis entender

Que, errando e sendo mulher,

Ficais por mulher errada.

(Conclusão)

 

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